Roberto Mangabeira, assessor do candidato Ciro Gomes - entrevista

Ajuste vai viabilizar a reindustrialização, diz Mangabeira
Por Maria Cristina Fernandes/Valor Econômico, 11/05/2018

O filósofo Roberto Mangabeira Unger conheceu o pré-candidato do PDT à Presidência da República, Ciro Gomes, quando este ocupou o governo do Ceará, nos anos 1990. Ciro tornou-se padrinho do mais velho de seus quatro filhos, Gabriel, hoje com 28 anos. De lá pra cá, não o largou mais. Mangabeira participou da formulação dos planos de governo de todas as suas campanhas presidenciais e divide, com Ciro, a autoria de "O próximo passo: uma alternativa prática ao neoliberalismo".

Com o apoio do seu partido, aos governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, tornou-se ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos. Em 2009, deixou o governo e voltou para Harvard, onde começou a lecionar em 1972, aos 25 anos, tornando-se o professor titular mais jovem da história da instituição.

Aos 71 anos, viúvo, este carioca de inconfundível sotaque ianque, tem sempre um brasão da República brasileira, comprado em Ceilândia (DF), na lapela. Não pretende abandonar a universidade durante a campanha. Prepara-se para lançar dois novos livros até agosto, com suas ideias para o programa com o qual espera que o amigo, que diz estar mais centrado, converta o eleitor que, no vaticínio de Leonel Brizola, costeia o alambrado para ver quem mente menos. A seguir, a entrevista, concedida na manhã de ontem num hotel em São Paulo:
Valor: O próximo presidente assumirá um país que, em dois anos, já não dará conta, com a receita, de suprir os gastos obrigatórios. Como enfrentar esse desafio fiscal com o bloqueio parlamentar que hoje predomina?
Roberto Mangabeira Unger: Há duas agendas, uma de fundo e outra de transição e esta só pode ser pensada de forma coerente à luz da agenda de fundo. O desenvolvimento baseado na massificação de consumo se exauriu. A nova estratégia é a reindustrialização do país em outro paradigma. Para isso precisa de um escudo fiscal, que pode ter um efeito contracionista sobre a economia, mas não deve ser apresentado como uma preliminar contábil a um projeto de desenvolvimento que depois se vai revelar. As duas coisas têm que vir juntas. O sacrifício tem que vir em nome de um novo modelo. O imperativo fiscal não deve servir para homenagear os interesses e preconceitos do mercado financeiro mas pela razão inversa. Para não depender da confiança financeira. Para que o país não esteja de joelhos e tenha margem de manobra para ousar.
Valor: E qual é a saída para desengessar o Estado? O senhor é favorável às desvinculações orçamentárias?
Mangabeira Unger: Há muito tempo. As vinculações de receita são, de fato, incompatíveis com o realismo fiscal. É uma tarefa de médio prazo. Nossa Constituição prometeu o céu e a terra sem construir os instrumentos institucionais ou econômicos para viabilizá-la. E casou com o viés predominante no discurso político brasileiro que é a ideia da Suécia social. Não a Suécia que enfrentou uma luta de décadas e resultou num acordo entre a plutocracia e o Estado de bem-estar social.

Apenas a Suécia do epílogo. O social é o açúcar com o qual se pretende dourar a pílula do modelo econômico. Se tentarmos consertar as finanças públicas apenas focando a pequena parte do gasto público que é discricionário, vamos paralisar o Estado.
Valor: Muitas das vinculações foram criadas para proteger massas desorganizadas com carências de saúde e educação. Um governo que se disponha a fazer desvinculações não corre o risco de ceder às corporações e sacrificar o gasto social?
Mangabeira Unger: Embora a doutrina do gasto obrigatório possa ter sido motivada pelo compromisso com as massas desorganizadas, sua estrutura está toda penetrada pelas corporações.
Valor: E como enfrentar um Congresso dominado pelas corporações?
Mangabeira Unger: Na estrutura presidencial plebiscitária como a nossa, o presidente tem imenso poder nos meses iniciais. Nesse período tem que propor as mudanças estruturais. Elas não serão consumadas instantaneamente. O segundo elemento é, na reorganização do gasto público, privilegiar a redução do custeio e recuperar a capacidade de investimento daquilo que é estratégico para o país.
Valor: Que proteção haverá contra o aviltamento do gasto social?
Mangabeira Unger: Pra manter a prestação de serviços universais do Estado, não precisamos traduzi-la numa camisa de força fiscal. A grande maioria dos países não fazem isso. É incompatível com o esforço para transformar o perfil do gasto social e impedir que seja dominado pelas corporações. As regras do teto de gastos também são uma camisa de força. Construímos uma camisa de força em cima da outra, até paralisar quase completamente o poder estratégico do estado. A curto prazo, precisamos disciplinar as despesas de custeio, manter o potencial de investimento e, sobretudo, o investimento estratégico, com medidas que têm efeito econômico para evitar ou atenuar o efeito contracionista desse esforço fiscal.
Valor: Faz-se isso sem BNDES?
Mangabeira Unger: Este é um tema ainda em discussão na campanha. O BNDES não deve financiar grandes empresas. O papel é financiar a qualificação produtiva do agente econômico mais importante do Brasil que é a multidão das pequenas e médias empresas. A empresa média de vanguarda é o que nos falta. O BNDES deveria facilitar o empreendimento inovador.
Valor: A desvalorização cambial é outro instrumento desse incentivo?
Mangabeira Unger: Tudo isso tem que ser construído com um ambiente macroeconômico que não iniba o crescimento. A depreciação cambial, por si só, não produz crescimento. Ninguém atribui poderes milagrosos à depreciação cambial, mas a apreciação cambial de um país grande em recursos naturais como o Brasil pode inibir o crescimento. Se tiver que mexer na estrutura tributária, façamos da forma mais neutra possível. Não é proposta de campanha, mas poderíamos adotar um imposto sobre exportação de produtos naturais, com alíquota inversamente proporcional à agregação de valor.
Valor: O senhor acha que o agronegócio de exportação paga muito pouco imposto?
Mangabeira Unger: Sim, mas, em princípio, não abraço a tributação das exportações com entusiasmo. Estou dando um exemplo do realismo fiscal. Se a influência do Estado no mercado de câmbio não for suficiente, pode ser suprida por uma reforma tributária que equilibre o risco da apreciação cambial. Simultaneamente na política de juros. Temos que superar o dualismo do mercado de crédito. A divisão entre um mercado de crédito subsidiado, que beneficia um pequeno número de grandes empresas, e um dinheiro caro para todos os outros. Em vez disso, a unificação do mercado de crédito, com uma política baixista de juros.
Valor: O que o senhor propõe para a estrutura tributária no curto prazo?
Mangabeira Unger: A curto prazo, inevitavelmente, a manutenção de um nível alto de receita pública, exigida pelo realismo fiscal, depende de impostos indiretos e agressivos. Afora os EUA e a França, as economias mais igualitárias, como são as sociais democracias europeias, se socorrem da tributação regressiva e indireta do consumo, sobretudo por meio do IVA [Imposto sobre Valor Agregado]. O país que mais privilegia a tributação progressiva da renda, que são os EUA, é o mais desigual. Como explicar isso? Os europeus arrecadam pelo menos 10% a mais do PIB pelo imposto neutro, que é o IVA. É um imposto que, por ser neutro em relação aos preços relativos, permite arrecadar o máximo com um mínimo de trauma. Tudo o que se perde do lado da progressividade na arrecadação, se ganha em dobro no gasto. A curto prazo, temos que ter um esforço progressivo de arrecadação suprindo algumas lacunas escandalosas como a falta de tributação sobre lucros e dividendos
Valor: Em que formato?
Mangabeira Unger: Simplesmente abolindo a exceção aos lucros e dividendos no Imposto de Renda. Outra lacuna igualmente escandalosa é a fraqueza da tributação de doações e heranças intervivos.
Valor: Mas hoje este não é um imposto federal. O senhor propõe institui-lo?
Mangabeira Unger: Sim, como o IR. Esta é a forma mais prática de fortalecer o aspecto progressivo da arrecadação exigida pelo escudo fiscal que o IVA não resolve.
Valor: Como reformar a Previdência sem ferir os direitos adquiridos?
Mangabeira Unger: O direito adquirido é um problema, mas não o problema. O regime que devemos querer, e isso é objeto de debate na campanha, é um regime que mantenha a obrigação residual do estado de prover um mínimo universal...
Valor: Que é o salário mínimo?
Mangabeira Unger: A quantificação depende dos recursos do Estado, não pode ser por dogma. Caminhar para um regime de capitalização que complemente, mas não substitua, essa capitalização básica. Esse é o desfecho, o rumo para onde queremos caminhar. Aí vem o problema de transição, para viabilizar isso, politicamente, é preciso não traumatizar os direitos adquiridos. O novo regime tem que se impor em etapas. Essa é a maneira de fazer em todos os países do mundo.
Valor: Como o senhor avalia a reforma da Previdência do governo Michel Temer?
Mangabeira Unger: Há aspectos incontornáveis como a idade mínima, que tem que ser submetida a uma matização setorial e regional.

Valor: Num Congresso hoje tomado pelos feudos partidários, o Ciro não corre o risco de ficar paralisado de cara?

Mangabeira Unger: Nosso regime político é copiado do presidencialismo americano. Para um país tão desigual quanto o Brasil, tem uma grande vantagem. Permite uma marcha direta ao centro do poder. Tem um potencial plebiscitário. E nos primeiros meses de seu governo, o presidente brasileiro dispõe de um poder imenso de primazia sobre o Congresso. Todos os presidentes brasileiros desde [Eurico Gaspar] Dutra foram eleitos em minoria e puderam fazer o que queriam. Ao mesmo tempo, esse presidencialismo plebiscitário que nosso colonialismo mental reproduziu tem um grave defeito. Foi desenhado para inibir a transformação da sociedade pela política, perpetuando os impasses. Temos que consertar isso depois, munindo o sistema presidencial de mecanismos para a solução de impasses, como plebiscitos ou referendos abrangentes ou por eleições antecipadas.
Valor: Não é natural que se tema o comando do processo decisório, no país que tem um dos Congressos mais fragmentados do mundo, nas mãos de um partido tão minoritário quanto o PDT?
Mangabeira Unger: É muito comum a elite reformadora do país pensar que partidos fortes é que geram os projetos nacionais fortes. Não foi assim em nossa experiência histórica. O regime partidário mais forte que já vivemos foi o que evoluiu na República de 1946 a 1964. Getúlio Vargas se elegeu e teve um projeto forte. O regime partidário se organizou em
torno desse projeto reinventado. Os partidos fortes foram a consequência e não a causa do projeto. Por outro lado, esta mesma elite também pensa que a reforma da política é a mãe de todas as reformas. Não é. Nenhum país reforma sua política para depois decidir o que fazer com ela. A reconstrução só ocorre no meio de uma luta para reorientar o caminho econômico e social.
Valor: O presidente a ser eleito vai dar de cara com um governo a ser loteado e uma aliança a ser firmada. Como acreditar que Ciro Gomes fará diferente?
Mangabeira Unger: Pode fazê-lo de forma institucional, não é esse mostrengo que está aí. O presidente hoje constitui uma curriola íntima, uma equipe econômica em que confie, e entrega o resto ao apetite. A saída é organizar institucionalmente as condicionantes para a participação no projeto de governo. Um projeto que não foi inventado no Palácio do Planalto, mas que foi construído e apresentado ao país no decurso da campanha para que não haja um estelionato eleitoral. É preciso se valer da virtude quando as instituições falham. O estadista que se vale da onda plebiscitária sabe que ela reflui e, antes que isso aconteça, precisa substituí-la pelas alternativas institucionais.
Valor: Mas não está claro como essas alternativas institucionais serão capazes de coibir o loteamento...
Mangabeira Unger: A maioria dos cargos discricionários deveria ser substituída por carreiras de Estado. Nós temos três agendas de construção do Estado. A primeira, que é uma agenda do século 19, que é a construção de carreiras do Estado. A negociação com os partidos se faz em cima, nos cargos de direção política, não em baixo, pela distribuição de dezenas de prebendas para o apetite dos aliados. Depois tem a agenda do século 20, que é a eficiência administrativa. E tem a agenda do século 21, que é a do experimentalismo na provisão de serviços públicos. O Estado deve prover um mínimo universal ao cidadão e ajudar a construir e financiar os serviços públicos mais complexos e inovadores com organizações sociais.
Valor: Como evitar que o loteamento de cara comece a bloquear
Mangabeira Unger: Já que não é dá para construir as carreiras já, é preciso se valer de critérios meritocráticos para nomear.
Valor: E, finalmente temos a agenda de fundo. Quando e se for possível chegar até lá, do que trata?
Mangabeira Unger: Primeiro é o paradigma produtivo que é a economia do conhecimento, depois as relações entre capital e trabalho e, finalmente, a educação. Na economia clássica do desenvolvimento da segunda metade do século passado, a industrialização era o atalho. Não funciona mais. As empresas que comandam a economia do conhecimento conseguem produzir mais e melhor do que as tradicionais. A industrialização tradicional com produtividade baixa, está vulnerável a uma arbitragem mundial em busca de salários e impostos menores. A economia do conhecimento é falsamente confundida com o Vale do Silício. Aparece, na verdade, como uma franja vanguardista em todos os setores da economia que exclui a grande maioria dos trabalhadores e das empresas e aprofunda a desigualdade. O complexo agrícola, energético, de saúde e de defesa estão na vanguarda, mas não só. O primeiro passo é qualificar as pequenas e médias empresas, coordenando o acesso delas ao crédito e à qualificação. O grande precedente é o extensionismo agrícola que revolucionou a agricultura familiar.
Valor: Ainda tem os dois outros pontos...
Mangabeira Unger: Tem a ver com a relação entre o capital e o trabalhismo. Não pode funcionar num ambiente de precarização do trabalho e aviltamento excludente. Por outro lado, tem as lideranças trabalhistas em defesa do direito das minorias organizadas. E elas não podem ser suprimidas por decreto. Precisa ter flexibilização.
Valor: Como a da reforma trabalhista proposta nesse governo?
Mangabeira Unger: O imperativo da flexibilização vira o pretexto para jogar os trabalhadores na precarização total. Tem que fazer mudanças na CLT para admitir as novas formas de produção. Metade dos trabalhadores estão na informalidade. E, na economia formal, metade esta em situação precarizada. Se juntá-los você tem a grande maioria. Não há condição de avançar rumo a um produtivismo includente apostando na precarização barata e desqualificada. Trabalho pode ser terceirizado? Sim. Mas a remuneração do trabalho temporário e terceirizado tem que ser equivalente ao estável. O terceiro elemento é a educação. Como reconciliar, num país grande, desigual, a gestão local das escolas com padrões nacionais. Para isso, além de um sistema nacional de avaliação e mecanismos para redistribuir recursos, precisamos ter mecanismos
corretivos que venham em socorro da rede escolar precária. Nossa educação é decoreba e de enciclopedismo raso. Precisamos de uma educação que priorize a análise e a síntese, que prefira o aprofundamento objetivo, que organize o ensino por equipe e que seja dialética na abordagem do conhecimento.
Valor: Todos os governos, desde a redemocratização têm tentado, bem ou mal, por em pé um projeto para o brasil. Por que fracassaram?
Mangabeira Unger: Tem que voltar a Getúlio Vargas. Criou a minoria organizada que domina o corporativismo. Depois vieram Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso com a ideia da liberalização, que significava adotar as práticas institucionais e as políticas públicas do hemisfério norte. Não as práticas adotadas quando esses países estavam em construção, mas as práticas de quando esses países já estavam construídos. Vamos imitá-los para buscar a confiança deles para que venha o dinheiro. Isso nunca construiu qualquer país do mundo. Vieram Lula e Dilma. O preço das commodities estava no apogeu e possibilitou o nacional consumismo. Dá 90% aos banqueiros e o resto para a massa. Sem balançar muito o barco. É o que o Darcy Ribeiro chamava de a esquerda que a direita gosta. As commodities desabaram e a presidente tentou uma sobrevida pelo keynisianismo vulgar, cujo corolário foram as pedaladas fiscais. Aí volta, no ritmo de tragédia e farsa, a década de 90 com esses que estão agora no poder. Não conseguimos ter um debate sobre as alternativas. O povo brasileiro está, como dizia meu amigo Leonel Brizola, costeando o alambrando para ver quem mente menos.

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